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#O JORNALISMO NO BRASIL EM 2023

O jornalista, essa minoria

Ao longo dos últimos quatro anos, o jornalismo experimentou o tratamento dispensado às minorias políticas — em 2023 espera-se que seus profissionais transformem essa memória em um pilar de práticas fundamentais

Denise Mota*
#O JORNALISMO NO BRASIL EM 202312 de dez. de 227 min de leitura
Denise Mota*12 de dez. de 227 min de leitura

O jornalismo brasileiro perdeu a inocência. Deixou de ser visto como um interlocutor qualificado, a voz que pautava o debate público, o detentor da verdade constituída, para ser achincalhado, expulso, humilhado, violentado. Ao longo dos últimos quatro anos, o peso do arbítrio caiu com orgulho e prazer sobre os que ousaram fazer perguntas, levantar incongruências, evidenciar falsidades. Ser jornalista — “lixo”, “vergonha”, “vendidos”, “corruptos” — virou atividade de risco permanente.

O trago amargo tão conhecido pelas chamadas minorias passou a ser homeopaticamente degustado também por esse grupo até pouco tempo atrás reconhecido como “quarto poder”. Foi um trauma para a profissão. Deveria se tornar uma lição.

A partir de 2015, mas com um fervor que atingiria o auge no ano seguinte, os chamados jornalões se apaixonaram por um salvador da pátria que redimiria 500 anos de corrupção brasileira com a prisão dos maus para reconstrução da nação a partir do governo dos bons. O viés de confirmação acentuado por preconceitos ancestrais; o furo sustentado pela camaradagem com os paladinos do momento, pródigos em declarações rimbombantes que edificaram narrativas; a ausência de senso crítico e de apuração real ajudaram a abrir as tortuosas avenidas que nos trouxeram até aqui. O jornalismo não pode fazer de conta que não teve nada a ver com isso. 

A experiência de ataque sistemático que o governo Bolsonaro deixa aos jornalistas — tanto a integrantes da grande imprensa como aos que se dedicam a meios independentes ou alternativos — é de contato real com a marginalização. 

É hora, pois, de, a partir dessa memória, entender de forma ativa o tamanho da tarefa que o jornalismo tem pela frente em 2023, se quiser contribuir para fazer do Brasil uma sociedade verdadeiramente justa. Compreender os perversos mecanismos que garantem e renovam a subalternização das maiorias minorizadas do país, humilhadas e excluídas como norma há séculos, não em um lapso circunscrito a um mandato presidencial.

"O trago amargo tão conhecido pelas chamadas minorias passou a ser homeopaticamente degustado também por esse grupo até pouco tempo atrás reconhecido como 'quarto poder'."

Terminou a inocência. Somos uma sociedade despudoradamente violenta e desigual, em que cada direito tem que ser defendido todos os dias sob pena de desaparecer; onde palavras como “democracia” estão sujeitas a interpretações autoritárias; onde um músico negro recebe 80 tiros a caminho de um chá de bebê com a família, mas um ex-parlamentar exige (e consegue) a presença do ministro de Justiça como condição para se entregar após disparar 50 tiros de fuzil e três granadas contra agentes da Polícia Federal.

Não há desculpas. O jornalismo não pode mais se furtar à evidência do arbítrio. Essa consciência terá que ser um pilar de práticas profissionais que se impõem desde já.

Tais práticas serão essenciais para saber ler e retratar a realidade dos condenados da terra, nos debates, embates e desafios que se vislumbram com novas roupagens em 2023.

Um lugar à mesa

O terceiro governo Lula recebe uma sociedade brasileira e um mundo radicalmente diferentes de duas décadas atrás, quando o presidente comandou o país pela primeira vez.

Os 60 milhões de votos que garantiram essa nova etapa foram angariados a partir de um arco enorme de alianças, onde se incluem coletivos e representantes de grupos marginalizados. A presença de Simone Nascimento, coordenadora do Movimento Negro Unificado, ao lado de Lula, no palco do seu primeiro discurso de vitória, simboliza essa constatação de forma inequívoca. 

O novo mandatário anunciou um Ministério dos Povos Originários. O movimento negro conclama à criação de um Ministério de Promoção da Igualdade Racial. Pretos e pardos continuam subrepresentados no Congresso, mas 141 parlamentares autodeclarados negros foram eleitos em 2022. Apesar de isso não significar obviamente compromisso automático com uma agenda antirracista, todos esses são fatores que indicam, já em um primeiro momento, que termos como diversidade, equidade e inclusão aplicados à administração de Brasília serão, sim, recorrentes e que ganharam protagonismo inaudito. 

Em 2023, será hora de entender de forma ativa o tamanho da tarefa que o jornalismo tem pela frente, se quiser contribuir para fazer do Brasil uma sociedade verdadeiramente justa.

No início de novembro, representantes da Coalizão Negra por Direitos levaram à discussão na COP 27 (a conferência do clima da Organização das Nações Unidas) o combate ao racismo ambiental, algo que deve ser prioridade para o Ministério do Meio Ambiente da nova gestão no Brasil, disseram.

Mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência, integrantes da comunidade LGBTQIA+ não vão se restringir ao papel de observadores e vêm deixando claro que esperam participação ativa e ações concretas por parte do governo.

As minorias, que representam mais da metade do Brasil, ajudaram uma vez mais a arrumar a mesa - e nela exigem um lugar. 

Práticas fundamentais 

A partir desse contexto, é preciso avançar. Ir além das “boas práticas” e adotar práticas fundamentais para que o jornalismo esteja à altura das circunstâncias em 2023. Alguns possíveis pontos de partida: 

  • Dar aos fatos o nome que eles têm. Isso não quer dizer dispensar o cuidado no uso das palavras ou reinventar conceitos. Um jornalismo responsável é uma necessidade indissociável à sua sobrevivência como interlocutor idôneo, em meio à multiplicidade de plataformas que oferecem informação como entretenimento ou mera arma de ataque a adversários. Mas racismo não é “polêmica”, é crime. Agressão não é “liberdade de expressão”. Mentira não é “ponto de vista”.


  • Diversificar as redações não só entre a reportagem e com trainees, mas também nos lugares de mando (o que ainda é um grande "buraco branco"). Segundo o Perfil Racial da Imprensa Brasileira, divulgado pelo Jornalistas&Cia em dezembro de 2021, 77,6% dos jornalistas brasileiros nas redações são brancos e, dos 20,1% negros, apenas 39,8% ocupam cargos de gerência.


  • Como consequência, mas também como ação consciente, diversificar olhares que problematizem de forma transversal a realidade do Brasil (ou seja, não é colocar negro só para comentar racismo, mas também economia, esportes, saúde, políticas públicas, Congresso etc.); renovar a agenda, buscar fontes que reproduzam a demografia brasileira.


  • Aproximar-se de coletivos, conhecer de perto e aprender com essas realidades, sair do declaratório das autoridades. Reconhecer e identificar uma terceira dimensão do jornalismo: não só como e quem o produz, mas a partir de que premissas.


  • Estabelecer pontes também com meios alternativos e jornalistas que diariamente estão nas periferias geográficas, sociais e culturais, e que contam com credibilidade junto às comunidades onde atuam.

  • A desinformação tem clientes preferenciais e se alimenta de vieses de confirmação. Entender como ela absorve e amplifica medos e preconceitos é um poderoso aprendizado para revisar nossas próprias lógicas. Incorporar ferramentas básicas de fact-checking à rotina diária de apuração nos protege do canto de sereia das redes sociais.
     

  • Ser imparcial é compreender a complexidade brasileira a partir de um olhar interseccional; é preciso desconfiar de como são contadas verdades estabelecidas. Falsa simetria não é imparcialidade. É ignorância ou má-fé;.
     

  • Populações imersas na base da pirâmide não podem ter acesso a conteúdos profissionais que fomentem o pensamento crítico se intermediados pelo paywall.

* Jornalista, com mestrado em Integração Regional na América Latina pela Universidade de São Paulo. É editora na agência de notícias France Presse, onde integra o Comitê de Diversidade. Também é colunista e autora do blog Preta, Preto, Pretinhos, na Folha de S.Paulo. 

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2023. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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