Conecte-se

#O JORNALISMO NO BRASIL EM 2023

O que fica do bolsonarismo?

O bolsonarismo e as táticas de desenvolvidas pela nova direita digital vieram para ficar. Por isso, em 2023, entender os mecanismos de desinformação, usar tecnologia e dados serão essenciais para cobrir a sociedade e investigar a política

Natalia Viana*
#O JORNALISMO NO BRASIL EM 202312 de dez. de 2213 min de leitura
Natalia Viana*12 de dez. de 2213 min de leitura

No dia 18 de novembro o ex-ministro da Defesa e ex-candidato à vice-presidência, Walter Braga Netto, foi ao encontro de um grupo de manifestantes que pediam um golpe militar, em Brasília. Uma mulher, exasperada depois de passear semanas protestando em nome do “mito” dirigiu-se a ele com a voz embotada: “A gente está na chuva, está no sol, ninguém escuta”. Ele respondeu que “era preciso não perder a fé” e que não poderia falar mais nada. Minutos depois, nas redes sociais, o recado escorregadio, ambíguo, estava dado: era preciso manter as manifestações que pedem um golpe de Estado pelos militares. 

Se alguém tivesse mantido a conta dos golpes que já foram tentados por Bolsonaro, esse seria de número mais de cem. E no entanto, aquela senhora manteve-se ali, contendo as lágrimas e agradecida por ter tido sua fé renovada de que poderia, ela também, fazer parte da história. 

O bolsonarismo é o primeiro movimento populista digital do Brasil. Nasceu e cresceu em uma onda de movimentos populistas de direita, liderados por oportunistas digitais que conseguiram, com maestria (ou talvez um pouco de sorte), aliar o anseio por maior participação democrática, expresso claramente, por aqui, desde junho de 2013 — já se vão lá 10 anos do “Brasil nas ruas” — com a maquinária dos algoritmos  que hoje controlam debate público com regras próprias. Ganha quem mais causa revolta, ódio, indignação. Não existiria bolsonarismo sem a lógica do marketing digital que embasa a arquitetura das plataformas, bem resumido pela professora Letícia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como “quem tem mais conteúdo, quem consegue chegar mais longe, tem aquele espaço”. Ou seja, para manter a militância mobilizada é necessário fabricar um perigo constante, uma ameaça iminente a cada dia. “Há também, temporalidade: o dia inteiro tem que estar sempre aquilo ativo. Quem está ali está ocupando espaço”, diz a pesquisadora. Quem não ocupa esse espaço mental, já perdeu. 

Assim, Jair Bolsonaro foi o primeiro presidente cuja estratégia de governo passava pela manipulação de discurso digital. Com apoio de seus filhos, ele governou via redes sociais. Não, apenas, usava-as para propagar os feitos positivos do governo através de influenciadores bolsonaristas; ele trazia para as redes as intrigas palacianas, para atacá-las e liquidá-las ali. E, por outro lado, usava as redes para alimentar seus planos, uma “circularidade” emprestada, mais uma vez do marketing digital, como aponta Leticia Cesarino: “Ele também influencia essa base, é claro, mas ele talvez seja muito mais influenciado por ela, porque está o tempo todo fazendo um crowdsourcing de temas, de preocupações. Isso é uma coisa totalmente nova, não existia nem no rádio, nem na TV”. Trata-se da política sendo regida pelo teste A/B.

Voltaremos ao aparato digital da nova direita, tema de grande interesse para nós jornalistas, mas antes, uma pausa. Tampouco haveria bolsonarismo se ele não apelasse a valores profundamente arraigados na sociedade brasileira, como o machismo, o racismo, o militarismo – valores que, por jamais terem sido confrontados de maneira sistemática, permanecem sendo constitutivos de identidades de pessoas como aquela senhora que tomava chuva em Brasília enquanto pedia um golpe de Estado, investida emocionalmente na missão que existe na sua cabeça de salvar o seu país. 

"Há pouco o que comemorar. Em 2023, a imprensa seguirá sendo um alvo preferencial, pois o ódio a ela funciona como elemento aglutinador da identidade bolsonarista."

Se há uma constatação que prove que o bolsonarismo veio para ficar, é essa. Por ser um movimento – como bem definido pelo próprio Steve Bannon – ele cria uma unificação cultural que dá sentido à existência dos milhões que aderiram de corpo e alma a ele. Em 2021, um levantamento do Instituto Paraná Pesquisas determinou que 27% dos entrevistados se diziam “bolsonaristas”, portadores dessa nova identidade política. Aos poucos, essa massa de eleitores foi sendo cuidadosamente conduzida de simples eleitores de um candidato de direita a um grupo que prega um golpe de Estado com base em absolutamente nada além de conjecturas estatísticas que poucos entendem, apenas porque seu líder não ganhou. Há dados que mensuram a radicalização. Em novembro, uma pesquisa do Instituto Locomotiva detectou que apenas 28% dos eleitores de Bolsonaro consideram que os protestos que fecharam estradas depois das eleições não são legítimos

A radicalização dessa fração significativa da população foi operada por uma sofisticada infraestrutura de desinformação foi construída nos últimos anos a partir de grupos mediados por pessoas de confiança de Bolsonaro, como seus filhos, apoiadores, deputados eleitos e militares mais próximos. Desde 2018, uma equipe da Agência Pública tem se dedicado a investigar e denunciar essa infraestrutura, que consegue, com grande articulação e coordenação, criar realidades paralelas, algumas vezes delirantes, mas que sempre cumprem a função de manter a coesão na parcela bolsonarista da população. Através de ferramentas de monitoramento de grupos de WhatsApp, Telegram, Facebook e Twitter, é possível chegar aos principais “nós de rede”, influenciadores médios, que atuam cotidianamente para ampliar mensagens importantes no dia a dia. É possível, ainda, determinar como funcionam, quem começa, por onde se espalham, quantas contas roborizadas ou inautênticas interagem e propagam cada uma das ondas de desinformação. Dá para entender seu timing e seu objetivo. E, emprestando metodologias da academia, podemos ainda entender as táticas usadas para propagar fake news – nós na Pública usamos a metodologia da equipe do Technology and Social Change project (TaSC)   da Universidade de Harvard, descritas no Media Manipulation Casebook

Muitas vezes, uma “onda” de desinformação é apenas o começo para uma investigação jornalística. A partir daí, buscamos identificar atores envolvidos, repercussões da desinformação no mundo offline, como em atos governamentais, por exemplo, esquemas de financiamento ou apoio que envolvam empresas ou grupos de lobby, além de documentos, entrevistas e outros tipos de registros que ajudem a entender como funciona cada campanha de desinformação. Também utilizamos nas investigações dados da circulação das mensagens nas redes, extraídos a partir de raspagem de dados de hashtags, de perfis e de termos para respaldar as reportagens.

Campanhas de desinformação atendem à estratégia definida pela equipe do TASC como “turvar as águas” (‘muddy the waters’, em inglês). O termo se refere à criação de um ambiente informático confuso e desorientador, no qual é difícil para um cidadão comum separar o que é verdade do que é mentira. Isso acontece quando há uma proliferação de fontes desinformacionais competindo com fontes que relatam fatos, como jornais, sites independentes, a comunidade acadêmica. A tática é mais relevante em momentos de instabilidade política, fabricada para ganho pessoal. 

Ao longo das investigações, passamos a entender algumas características da infraestrutura bolsonarista. Primeiro, a importância dos mediadores, dos administradores de grupos e páginas de amplo alcance. Embora não se restrinjam ao núcleo duro do presidente, esses mediadores podem chegar a algumas centenas, não mais que isso. São eles o mais importante elo da rede bolsonarista –  quem modula a mensagem para públicos diferentes, como por exemplo o segmento evangélico ou o segmento policial (aqui, também, emprestam conhecimentos de segmentação do marketing digital).  

Outro aspecto que focou claro é que essa rede, que já agiu de maneira mais artesanal e orgânica, foi nos últimos anos largamente amplificada por recursos públicos. De verbas destinadas a sites que espalham fake News, como Pleno News, a anúncios pelo Youtube e até cachê sendo pago diretamente a influenciadores para propagandearem tratamento precoce contra a Covid. Além de verbas parlamentares, fartamente usadas por deputadas bolsonaristas que são grandes desinformadoras e propagadoras do discurso de ódio, como Bia Kicis e Carla Zambelli, alguns personagens que atuam fortemente nas redes bolsonaristas como Tercio Arnaud, integrante do gabinete do ódio, Lisboa, do Vlog do Lisboa, e Jouberth Souza, receberam verbas do fundo eleitoral para serem candidatos, mas trabalharam mais espalhando desinformação. 

Ou seja: a desinformação extremista é hoje em grande parte bancada por dinheiro público. 

O resultado das eleições, bastante positivo para o bolsonarismo, que elegeu senadores e governadores, significa que esse avanço em cargos do executivo e legislativo darão sobrevida financeira a essa infraestrutura. São centenas de deputados estaduais e federais que poderão usar suas verbas de gabinete para fomentar ainda mais uma rede que, mesmo tendo sido observada de perto pelo TSE – que fez um trabalho hercúleo nessas eleições – não se desfez.   

Há dois outros aspectos do bolsonarismo que merecem a nossa atenção. Primeiro, a criação de uma infraestrutura social, humana, cujo principal foco é criar ambientes onde a desinformação corre solta – do negacionismo sobre a Covid e vacinas, até uma inexistente ameaça do comunismo. É o caso das dezenas de Congressos Conservadores promovidos pelo Instituto Conservador Liberal, o ICL, fundado por Eduardo Bolsonaro justamente para importar o modelo americano para o Brasil. Muitos desses congressos foram financiados por empresas de agronegócio – grupo que também se notabilizou pelo financiamento dos bloqueios golpistas nas estradas – e por empresas armamentistas como clubes de tiro. Em 2020, em uma conferência conservadora nos EUA, Eduardo explicou que, para ele, o maior desafio do bolsonarismo era a falta de uma “estrutura” para o movimento: uma “mídia de massa”, “universidades conservadoras”, think tanks e eventos conservadores. “Não temos nem uma Fox News”, disse.  “Temos todos os ingredientes, só precisamos organizar e crescer para construir essas estruturas”. É a isso que está dedicado o 03. 

Outro ponto que merece atenção é a rede internacional de apoio a essa empreitada, em parceria com figuras-chave da direita americana, rede essa também articulada por Eduardo Bolsonaro em mais de 70 encontros com republicanos e trumpistas em 4 anos. Figuras essenciais para a tentativa de reverter as eleições americanas de 2020, como Ali Alexandre, líder do movimento Stop The Steal (‘Pare o roubo’), o apresentador da Fox News Tucker Carlson, o membro do conselho do Projeto Veritas, uma organização que planta câmeras escondidas para “expor” jornalistas “de esquerda”, e o próprio Steve Bannon ajudaram a espalhar mentiras sobre fraudes nas eleições brasileiras – e vão seguir atuantes pelo simples fato de que manter acesa a narrativa de que há uma conspiração internacional da esquerda, com Lula e Biden à frente, serve ao seu propósito de gerar pânico moral nos eleitores republicanos.    

Ou seja, há pouco o que comemorar. Nessa próxima etapa, a imprensa seguirá sendo um alvo preferencial, pois o ódio a ela funciona como elemento aglutinador da identidade bolsonarista. Seguiremos sendo xingados e achincalhados, sim, e é importante nos organizarmos e acionarmos as associações e organizações de defesa do jornalismo, como Ajor, Abraji, Fenaj. Mas, talvez tão importante quanto, será que os jornalista se dediquem estudar o fenômeno da desinformação e entender como nosso trabalho faz parte dele. 

Explico: usar a imprensa para o propósito de desinformar, gerar ódio e causar pânico moral faz parte da estratégia da extrema direita. Segundo o já citado Media Manipulation Casebook , chegar à imprensa é parte da terceira etapa no “ciclo da manipulação”, aquela que consolida qualquer campanha desinformativa. Hoje, é papel da imprensa, sim, refletir sobre o que deve e o que não deve ser coberto, em que casos vale a pena exercer o “silêncio estratégico”, e como cobrir narrativas mentirosas. 

Na Pública, acabamos por adotar um mecanismo de “neutralização” de desinformação sugerido por acadêmicos que pesquisam o assunto: nunca, jamais, publicamos uma mentira sem ter o seu desmentido logo abaixo. Outras fórmulas, mais ou menos eficazes, têm sido adotadas. Ao perceber que o ritual diário de manter apoiadores fanáticos no “cercadinho” do Planalto servia apenas para que estes xingassem a imprensa que ia para lá fazer perguntas normais sobre os atos de governo, alimentando, assim, as redes sociais de conteúdos a serem usados em campanhas de assédio, o site Congresso em Foco decidiu deixar de comparecer àquele circo. Jornais da grande imprensa seguiram essa decisão, um marco no jornalismo brasileiro. 

São apenas dois exemplos concretos, que ajudam a entender que, hoje, nosso trabalho passa a ser mais metalinguístico. É preciso pensar no que fazemos o tempo todo. 

"Para o futuro próximo, não consigo enxergar como cobrir política sem cobrir desinformação. O futuro da cobertura política está aí."

Mais do que isso, será fundamental aos jornalistas aprender a usar tecnologia e dados para investigar como estão fluindo as conversas na sociedade. A política, hoje, se faz naquela circularidade mencionada por Letícia Cesariano: nas redes, nas ruas e no palácio, ad infinitum, e a manipulação do discurso se dá em qualquer uma dessas etapas. Criam-se fatos políticos a partir de um punhado de seguidores fanatizados, mas através do uso cuidadoso de redes bem arquitetadas, pode-se gerar movimentos sociais temerários – voltemos a pensar naqueles que estão ainda diante dos quarteis no momento em que escrevo este texto. Há hoje poucos jornalistas especializados em investigar a desinformação e responsabilizar seus principais atores – além da Pública, recomendo a leitura do Núcleo e do Aos Fatos, todos sites de jornalismo independente. Mas, para o futuro próximo, não consigo enxergar como cobrir política sem cobrir desinformação. Jornalistas experientes como Patrícia Campos Mello perceberam isso, e fazem uma cobertura de grande impacto que leva em conta a realidade da política mediada pelo digital. O futuro da cobertura política está aí.

Finalmente, retorno ao ponto inicial, quando tratei das raízes mais profundas do bolsonarismo. O jornalismo brasileiro não foi capaz de enfrentar alguns enormes esqueletos que sempre estiveram no armário, como o racismo estrutural e a desigualdade que malogra qualquer coesão social. Um dos casos mais gritantes é, claro, o tema dos militares, intrinsecamente ligado à construção de um pacto de anistia pós-Ditadura que não trouxe justiça contra quem usurpou o poder do povo durante 21 anos, torturou, desapareceu, massacrou indígenas. Os legados da ditadura tampouco foram abordados com coragem: as polícias militares que seguem matando impunemente, as vexaminosas mordomias dos militares, que formam um dos maiores grupos de servidores federais e respondem por quase metade dos gastos da previdência social. Além de seu enorme poder de barganha que, hoje, transformou-se em poder de chantagem. 

É papel da imprensa enfrentar os problemas estruturais que serviram de semente ao bolsonarismo. É preciso fazer investigação histórica e apontar cadeias de responsabilização, além de cobrar que os responsáveis por crimes contra a sociedade e contra o estado democrático de direito sejam punidos. Afinal, como diz o filósofo Valdimir Safatle, “quando você não acerta suas contas com a história, a história te assombra”.

Nessa nova etapa da nossa democracia, cabe a nós jornalistas mirar o futuro, sempre, com um olho no passado.  

*Diretora executiva da Agência Pública e Nieman Fellow em Harvard. Seu último livro, Dano Colateral, trata do avanço dos militares na segurança pública e na política brasileira. Natalia é membro do Conselho da Fundação Gabriel García Márquez e do Centro para a Integridade da Mídia, da OEA. 

 Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2023. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

Realização Farol Jornalismo e Abraji
#O JORNALISMO NO BRASIL EM 2023
Cobertura política
Desinformação
Redes sociais
Jornalismo