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#O JORNALISMO NO BRASIL EM 2023

Quatro destinos para a mídia ex-bolsonarista

Veículos que se alinharam ao atual regime podem seguir bolsonaristas, dedicando-se a uma oposição radical, administrar críticas ao novo governo, mudar a postura editorial e apoiar a nova administração ou abraçar valores jornalísticos clássicos

Jacques Mick*
#O JORNALISMO NO BRASIL EM 202312 de dez. de 226 min de leitura
Jacques Mick*12 de dez. de 226 min de leitura

As mídias jornalísticas que aderiram ao bolsonarismo depois de 2019 continuarão a sustentar essa política editorial no terceiro mandato presidencial de Lula ou irão abandoná-la para dar lugar à oposição moderada, a um novo governismo ou ao compromisso clássico com a imparcialidade?

Formular hipóteses pode ser tão desafiador quanto divertido. Afinal, em 2018, quando era um candidato proveniente dos confins da política e de vitória improvável, Jair Bolsonaro elegeu-se presidente sem dispor de nenhuma mídia jornalística a que pudesse denominar “bolsonarista”. Empossado, produziu-se o milagre da multiplicação de empresas jornalísticas alinhadas à extrema direita. Ao longo do mandato, inúmeras mídias de alcance nacional, regional ou local optaram por apoiar o presidente e abraçar sua agenda pró-bíblia, bala, boi e Brasil como pária.

Tal adesão pode ter sido motivada por interesse em fidelizar a parcela da audiência à direita (ou outro tipo de interesse — afinal, alguma verba sempre pode vir de quem tem poder), por identificação ideológica (surgiram versões do Velho da Havan no patronato jornalístico e entre medalhões do colunismo) ou pela prevalência de uma cultura jornalística leal-facilitadora. 

Nesse tipo de cultura profissional, o jornalismo apoia as iniciativas das elites políticas ou econômicas porque vê a si próprio como um agente de desenvolvimento e promoção do Estado nacional. O jornalismo de tipo leal-facilitador é mais comum em países autoritários, mas está presente também em regimes democráticos — por exemplo, na cobertura cordial das iniciativas do empresariado. (Mais detalhes sobre esse modelo de desempenho dos papeis profissionais estão disponíveis em “Beyond Journalistic Norms”, livro organizado pela professora chilena Claudia Mellado).

"As mídias que aderiram ao bolsonarismo no ciclo 2019-2022 têm pela frente quatro possibilidades em 2023."

As mídias que aderiram ao bolsonarismo no ciclo 2019-2022 têm pela frente quatro possibilidades em 2023; vamos examiná-las na conexão com as motivações que as levaram a adotar tal agenda.

A primeira é continuarem bolsonaristas e se dedicarem à oposição radical. Conta a favor dessa escolha o fato de que boa parte da audiência dessas mídias votou em Bolsonaro novamente — e, embora nem todos os eleitores sejam radicais de direita, todos são antipetistas. Existe, portanto, algum espaço para proselitismo midiático de oposição. Contra a escolha, conta o fato de que posições radicais são minoritárias mesmo na base da direita. Além disso, a oposição é um lugar desgastante, em que os triunfos, se houver, serão colhidos dentro de vários anos. Uma oposição radical exige que a identificação ideológica dos patrões com o bolsonarismo seja muito forte – maior que o pragmatismo dos donos de Jovem Pan e Rede TV!, que demitiram colunistas histriônicos logo após o resultado do segundo turno, sinalizando na direção de uma postura editorial mais moderada.

Essa é exatamente a segunda possibilidade à frente das mídias bolsonaristas: administrar com moderação a crítica ao novo governo. Ela é coerente com as motivações orientadas pelo interesse. Sempre que a biruta política muda de direção, os patrões da mídia estão atentos ao sentido dos ventos da publicidade oficial. Este deve ser o destino da maior parte da mídia ex-bolsonarista: para manter as melhores relações com a equipe de Lula, não devem se parecer com a voz do governo derrotado — caminho já determinado pelo Bispo Macedo para a rede Record. Se até quem tem projeto fundamentalista de poder optou pelo aggiornamento, que outros patrões manterão a defesa inflexível de Bolsonaro e sua família de interesses? Além disso, sem o foro especial, o ex-presidente deverá responder à Justiça comum em mais de uma dezena de processos.

A terceira possiblidade é que essa mídia passe a apoiar o novo governo, numa mudança gradual de enquadramento editorial. Tal movimento político corresponderia à adoção bastante particular de um papel leal-facilitador: se em vários países, sob tal justificativa o jornalismo contribui com a realização de políticas do interesse do Estado e das elites econômicas, no Brasil essa convergência interinstitucional deu-se apenas na agenda do governo que acaba em 2022. Para fortalecer essa hipótese, existe também a possibilidade de que, tendo desempenhado papel crucial para o golpe contra Dilma e a prisão de Lula em 2018, parte da mídia resolva agora compensar a História e ser condescendente, ao menos no início do mandato presidencial. Se a gestão for boa, o apoio se alongará com alegria.

"Jornalismo pluralista e que busca imparcialidade pode tentar ser praticado por mídias consagradas que sistematicamente reconheçam os seus erros."

A quarta alternativa ao alcance da mídia ex-bolsonarista seria abraçar valores jornalísticos clássicos, como o pluralismo e a imparcialidade. É um caminho improvável por três razões principais: 

  • Ninguém esquece que elas de fato abraçaram um lado por muito tempo e falar em “imparcialidade” soaria cretino; 

  • A experiência de jornalismo plural e imparcial no Brasil é, para usar termos respeitosos, bastante limitada; e

  • O público brasileiro, como apontam os estudos do Instituto Reuters, tem dois comportamentos que restringem o alcance do jornalismo imparcial: quase metade foge das notícias e, da outra metade, a maioria prefere aquelas que combinam com sua própria visão de mundo.

Não é de espantar que tantos brasileiros tenham acreditado nas mentiras que Bolsonaro dissemina: essas pessoas consideram melhor ir direto até quem diz o que querem ouvir, já que não confiam em outras vozes.

Jornalismo pluralista e que busca imparcialidade pode tentar ser praticado por mídias consagradas que sistematicamente reconheçam os erros que cometeram quando tomaram um ou outro partido; algumas conseguiram conservar boa audiência. Fora isso, permanece um desafio a invenção de formas de governança que favoreçam a coexistência entre sociedades contemporâneas e jornalismo autenticamente pluralista — não só no Brasil e, especialmente, nas mídias locais. Espaço para isso ainda existe, como sugere o fato de que a audiência das mídias de referência ter crescido no início da pandemia de Covid 19 porque as pessoas precisavam de informação em que pudessem confiar.

*Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, da qual é pró-reitor de Pesquisa e Inovação.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2023. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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